Interesse Privado e Negociações

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Maria Helena Tachinardi

2 de Abril de 2003 – Ainda está por ser melhor pesquisado o efeito sobre a sociedade civil brasileira do contencioso entre a Embraer e a sua concorrente Bombardier, do Canadá, fabricante de jatos regionais. A divergência entre as duas empresas – na verdade um dos grandes conflitos da Organização Mundial do Comércio (OMC), no início do milênio, entre um país desenvolvido e outro em desenvolvimento – “chamou a atenção” da parcela da população mais atenta às relações externas do País para a existência de normas internacionais “que modelam o que se pode ou não fazer”, destaca uma fonte do Itamaraty.

Em razão do contencioso Embraer-Bombardier e de outro conflito que se tornou também popular – o da proibição pelo Canadá, em 2001, da entrada de carne bovina brasileira, devido à alegação de que o produto estaria contaminado pela doença da “vaca louca” – a sociedade civil se mobilizou. Na questão da “vaca louca”, parlamentares, empresários e sindicalistas manifestaram sua contrariedade à atitude canadense. Essa mobilização política respaldou socialmente o governo em um assunto de política comercial externa.

O tema das negociações comerciais do Brasil, que até bem pouco tempo era tratado apenas pelo governo, começa a interessar outras comunidades, como a acadêmica, empresarial e sindical. Obviamente, ao governo brasileiro sempre caberá negociar com outro governo. Quem se interessa por negociações comerciais tem um objetivo claro em mente. Os escritórios de advocacia, por exemplo, precisam treinar seus advogados para assessorar empresas e o governo em contenciosos internacionais. “Para entender a dinâmica de uma negociação oficial, o aluno participa de uma negociação oficial simulada”, diz Amâncio Jorge de Oliveira, diretor de pesquisa do Centro de Estudos das Negociações Internacionais.

A meta do Caeni, que ministra um curso de capacitação em negociações internacionais, no qual treina os alunos (em geral advogados, economistas, administradores de empresa e analistas de relações internacionais) por meio de situações simuladas, é atender também negociadores do governo brasileiro, informa Janina Onuki, diretora executiva da instituição. O Caeni usa o modelo de negociações de Harvard, conhecido como PON. O próximo curso de capacitação, em julho, simulará a guerra no Iraque, mas no sentido de negociar para evitar o conflito.

O caso Bombardier-Embraer foi escolhido, juntamente com o regime automotivo, por ambos simbolizarem contenciosos com implicação bilateral (Brasil-Canadá e Brasil-Argentina) na OMC. “Na aula explicamos como foi o processo de negociação”, acrescenta Janina. “Os alunos se dividem em dois grupos e cada grupo recebe informações sobre o que vai negociar”, explica Amâncio de Oliveira. Outro tema de simulação envolvendo o setor privado é o petróleo e o objetivo é “como atingir o melhor preço na negociação” entre duas empresas.

Hoje, as negociações que mais mobilizam a atenção da sociedade civil são as da Alca e da OMC, mas não se pode esquecer do papel fundamental que o Mercosul teve ao treinar governo e empresas para o jogo da integração.

No início, em 1991, o bloco era visto como um processo governamental, mas depois de 1994, quando se realizou a reunião de Ouro Preto, que deu um caráter institucional ao Mercosul, a sociedade civil passou a participar do processo. O Fórum Econômico e Social (centrais sindicais, associações patronais da indústria, comércio e agricultura), o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) e a Comissão Parlamentar Conjunta surgiram em 1994; a Comissão Sócio-Laboral (governo, associações patronais e sindicatos de trabalhadores), em 1998; e o subgrupo n 10, sobre assuntos trabalhistas, em 1995.

Como o governo quer maior participação da sociedade civil nas negociações do Brasil, há intenção de fortalecer o papel da Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, por onde tramitam matérias do bloco. Atualmente, esse fórum é mais uma das comissões por onde passam os acordos firmados entre os quatro sócios – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. Os parlamentares da Comissão acompanhariam a negociação das normas do bloco e saberiam em detalhes do que se trata, o que agilizaria o processo de ratificação.

A ampliação da agenda de interesses internacionais, não só do Estado, mas de empresas, governos estaduais e municipais, centrais sindicais e ONGs, coincide com o desejo de um envolvimento maior da sociedade na condução da política externa brasileira. O coordenador do curso de relações internacionais da PUC-SP, Reginaldo Mattar Nasser, diz que a movimentação da sociedade civil nos casos da “vaca louca” e da Embraer-Bombardier “conferiu força à ação governamental, indicando que a projeção internacional do Brasil frente aos novos desafios depende não apenas de uma diplomacia competente, mas sobretudo de um envolvimento político maior da sociedade na condução de nossa política externa”.

fonte: Gazeta Mercantil/Página A3