Amâncio Jorge de Oliveira
Muito se falou da reunião de cúpula Brasil-Estados Unidos, mas pouco sobre de que modo seus resultados ajudam a decifrar a política externa do governo petista. Para começo de conversa, a reunião eliminou as dúvidas, para quem ainda as tinham, de que o pragmatismo do atual governo transcende a área macroecômica e prevalece também na política externa. Embora nenhum compromisso formal de adesão à Alca tenha sido feito, a sinalização política de engajamento construtivo nos esforços da integração continental, emitida pelo presidente Lula, não tem precedente. Em nenhum estágio anterior das negociações, iniciadas ainda em 1994, o governo brasileiro chegou a emitir sinais tão claros de disposição política para encontrar caminhos para superar os impasses existentes.
O resultado da reunião surpreende não apenas pelo o que representa de contraste com os discursos da campanha presidencial, mas também pelas reduzidas expectativas de que o governo se dispusesse a abrir mais uma frente de desgaste político com determinados segmentos da sociedade, além dos que já enfrenta no campo das reformas estruturais e dos ajustes macroeconômicos. Intuia-se que o governo reservasse para o plano externo uma agenda de esquerda com tons populistas, escanteada do âmbito doméstica por forças das circunstâncias.
Ficou claro, pelos resultados da reunião, que pragmatismo e maturidade prevalecem na agenda externa. Ao adotar essa postura o governo faz seus cálculos levando em conta os custos de possível não adesão à Alca, de isolamento econômico e político no continente. Politicamente não poderia haver nada pior para o relacionamento com os países latino-americanos do que arcar com o ônus de inviabilizar a Alca. A declaração recente de um dos principais responsáveis pelas negociações da Alca no Brasil, o Conselheiro Tovar Nunes da Silva, de que nenhum país co-preside um processo negociador para inviabilizá-lo, dão conta desse tipo de preocupação. Seguramente será melhor estar numa posição de co-liderança, ou seja, liderança hemisférica compartilhada com os Estados Unidos, cenário que se apresenta como possível, do que isolamento. Já no campo econômico nada poderia arriscado para o Brasil do que assistir passivamente os Estados Unidos costurar acordos bilaterais no hemisfério, e fora dele, e ver sua posição relativa no acesso ao mercado daquele país deterior-se. A atual gestão leva em conta também os potenciais benefícios da Alca traduzidos em termos ampliação das exportações para setores dinâmicos, investimentos, estabilidade macroeconômica e instrumentos para garantia das reformas estruturais.
Como se bastassem tais incentivos positivos, o governo brasileiro sinaliza, e isso ficou claro na reunião de Washington, estar disposto a receber concessões cruzadas em troca de um apóio mais efetivo da Alca. Apoio à candidatura do Brasil como membro permanente ao Conselho de Segurança da ONU é umas dessas concessões. Outras, talvez ainda mais importantes, estão no campo do desenvolvimento econômico e social, tais como programas de amparo ao trabalhador, crédito para empresas brasileiras, apoio à micro e pequenas empresas, incentivos à infra-estrutura, acordos na área de saúde e energia entre outros. A criação do Grupo de Trabalho para o Crescimento entre o Ministério da Fazenda brasileiro e o Departamento do Tesouro americano é parte desse esforço.
Aliás, sinalizar para concessões cruzadas passou a ser a nova estratégia adotada pela administração Bush para minar a resistência brasileira à Alca. Obviamente este tipo de apoio não será o fator determinante da escolha brasileira, e sim a possibilidade de que o acordo atenda aos interesses nacionais no sentido mais amplo, como não poderia ser diferente. Mas tais concessões colocam as relações dos países em novas bases e ajuda a viabilizar a proposta.
O encontro de Washington pouco teve de significativo do ponto de visto substantivo para as negociações. O mais importante foi a criação do Comitê de Comércio Agrícola, de carácter consultivo e que deverá encontrar sériais dificuldades em forjar fórmulas para superar o principal impasse dessas negociações. Além disso, em diferentes ocasiões, negociadores norte-americanos, no que são acompanhados por seus pares de alguns países latino-americanos, vêm deixando claro que as não serão aceitas as propostas brasileiras de enxugar os compromissos da Alca, seja por meio do uma negociações de tipo “4 +1”, “três trilhos” ou por meio de uma “Alca-leve”.
O mais importante, e esse era o real objetivo da reunião, foi a sinalização política dada em Washington do comprometimento de ambos os países com o processo. A começar pela manutenção de 2005 para o término das negociações, conforme previamente estabelecido. O risco de uma grande desmobilização de setores importantes da sociedade brasileira, como de empresários, estava prestes a ocorrer caso essa sinalização política não tivesse sido dada.
O governo acerta ao manter uma postura assertiva nas várias frentes bilaterais, no aprofundamento e alargamento do Mercosul, nas negociações entre Mercosul e Europa, e simultaneamente na busca por fórmulas que viabilizem as negociações da Alca e da OMC. Até porque não são esforços excludentes e coloca o Brasil numa posição relativa melhor para negociar em todos esses fóruns. Conquistar novos mercados será função direta da capacidade do governo em negociar com ousadia e pragmatismo, ambos reiterados nessa reunião que, como o próprio Ministro Celso Amorim frisou, constitui um marco histórico no relacionamento bilateral entre Brasil e Estados Unidos.
Amâncio Jorge de Oliveira, doutor em Ciência Política pela USP, é diretor de pesquisa do CAENI e coordenador do Projeto ALCA na Prospectiva Consultoria de Assuntos Internacionais.
fonte: CAENI
18/7/2003