Janina Onuki
Não há dúvida de que a posse do Presidente argentino Néstor Kirchner abre novas perspectivas de diálogo para a criação de uma agenda de recuperação do Mercosul. De fato a ameaça – mesmo remota – de vitória do ex-presidente Carlos Menem criava constrangimentos prévios e inibia as perspectivas do bloco, derivada da desconfiança em relação à uma possível retomada das “relações carnais” com os Estados Unidos.
Kirchner e seu já nomeado Ministro das Relações Exteriores, Rafael Bielsa, têm insistido no Mercosul como prioridade da nova agenda externa e, insistido mais ainda no relacionamento bilateral com o Brasil.
Entretanto, ainda é cedo para comemorar. Apenas a vitória de Kirchner é um indicativo muito fraco para correr (de novo) o risco de se falar do “bloco Mercosul”. A revitalização do Mercosul depende muito mais do Brasil do que de uma atuação conjunta dos quatro países.
A imagem positiva de Lula, e o discurso da liderança do Brasil, parece empolgar nossos parceiros sul-americanos e, particularmente a Argentina. Isso porque a Argentina não tem uma agenda de política externa consolidada. A “prioridade” atribuída ao Mercosul indica mais uma falta de opção do que propriamente uma postura propositiva. O discurso de campanha de Kirchner se pautou na oposição ao modelo de política externa adotado durante o governo Menem.
Apoiar a liderança do Brasil agora parece ser a melhor alternativa de não se isolar do mundo e eliminar um ponto da complexa agenda que Kirchner tem pela frente. Além disso, a integração com o Brasil aumenta a legitimidade do próprio Presidente junto à população argentina, e pegar carona com o Brasil nas negociações internacionais em curso, não deixa de ser uma boa estratégia para um país que ainda está submetido às condicionalidades do FMI.
O desafio que o novo presidente argentino vai enfrentar nos próximos meses internamente vai testar a sua legitimidade – que Menem o impediu de conquistar no segundo turno. Embora a crise tenha sido razoavelmente controlada, Kirchner tem diante de si, todos os problemas estruturais de um sistema político que não concluiu a transição para a democracia. Diante disso, para a Argentina, a melhor postura é apoiar a liderança do Brasil.
Mas, nos últimos anos, o Mercosul sofreu impactos de crises externas e intra-bloco (sobretudo com o aumento dos conflitos comerciais, e a indefinição de regras institucionais para solucioná-los). Além disso, a crise em que mergulhou a Argentina e a incerteza sobre as eleições no Brasil no ano passado (que foram polarizadas no tema da política externa), reduziram o Mercosul a um processo sem agenda de negociação.
Por essas razões, a revitalização do bloco depende mais do direcionamento que o Brasil está disposto a dar e do que temos a oferecer para nossos parceiros. É preciso ter clareza de que não podemos usar o Mercosul simplesmente como instrumento político para adiar outras agendas de negociações internacionais, mesmo porque essa tática pode não ser mais tão eficaz (vide as declarações de Zoellick, descartando um possível acordo 4+1, proposto pelo governo brasileiro).
Mas é de se esperar que o investimento a ser feito na integração regional gere um ativo político para o Brasil, ao ser combinado com outras agendas de negociação bilateral e no âmbito multilateral. Se quisermos consolidar nossa liderança regional, reativar o Mercosul é fundamental, e este é o melhor momento. Mas é preciso ter clareza de que a Argentina tem pouco a nos oferecer, e que o processo de integração é, em si, um custo que o Brasil terá de assumir.
Janina Onuki é professora de Relações Internacionais da PUC-SP, diretora do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (CAENI) e vice-presidente do Fórum Universitário Mercosul.
fonte: Artigo publicado no Boletim da Prospectiva Consultoria. Maio 2003.
1/5/2003