O que esperar do plebiscito constitucional no Chile

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Entre o passado e o futuro: o que esperar do plebiscito constitucional no Chile

Leandro Lima*
26 de outubro de 2020 | 05h30

Trinta e dois anos após o histórico plebiscito que garantiu o retorno de eleições presidenciais democráticas e o fim do regime do general Augusto Pinochet (1973-90), os chilenos foram às urnas no último domingo 25 de outubro para um novo acerto de contas com seu passado. Uma sólida maioria de 78% dos eleitores deu o xeque mate na Constituição atual, promulgada por Pinochet em 1980, optando por lançar um longo e desafiador processo constituinte para substituí-la. Abundam as expectativas populares com a nova Constituição assim como as constituinte para substituí-la. Abundam as expectativas populares com a nova Constituição, assim como as incertezas.

O plebiscito foi essencialmente o resultado de insatisfações sociais que se camuflaram em meio ao crescimento econômico e a estabilidade política das últimas três décadas, cujas fissuras são hoje evidentes. A onda de protestos iniciada no país em 18 de outubro de 2019 – a maior e mais violenta desde a redemocratização – trouxe à tona o questionamento do modelo socioeconômico chileno. Os manifestantes também miraram naquilo que entendem ser uma grande causa subjacente ao seu mal-estar social: a Constituição.

A Constituição consagra um modelo de bem-estar social que fundamenta-se no elevado papel de agentes privados na provisão de serviços públicos como saúde e educação. A combinação de sua origem autoritária com a percepção de abusos econômicos cometidos por tais entes privados puseram em xeque a legitimidade da ordem constitucional, levando o presidente Sebastián Piñera e o Congresso em 15 de novembro de 2019 a propor o plebiscito.

O resultado da votação não apresentou surpresas, já que as pesquisas vinham apontando o  amplo favoritismo pela nova Constituição. A grande dúvida que inquieta setores sociais, políticos e empresariais é o que vem depois deste domingo, um processo constituinte que ocorrerá entre meados de 2021 e 2022 cujas deliberações se darão sob alta polarização política e ansiedade popular.

As demandas centrais dos protestos de 2019 permanecem vivas, como evidenciado pelas manifestações das últimas semanas na capital Santiago, e estarão no centro do debate público pelos próximos dois anos. As votações da futura assembleia constituinte em temas relacionados a direitos socioeconômicos provavelmente serão o gatilho para novas mobilizações sociais e, consequentemente, potenciais eventos de violência por conflitos entre policiais e manifestantes.

Na nova Constituição, o fortalecimento formal do papel estatal na garantia do bem-estar social muito provavelmente estará entre as inovações chave. O foco social também afetará a empresários e investidores. É factível esperar mudanças em torno do uso de recursos naturais pelo setor produtivo, especialmente a água. A longa seca que atinge o Chile desperta questionamentos sobre a atual forma de exploração, que hoje confere grande flexibilidade às empresas (como a mineração e o agronegócio) de consumo intensivo de  água. Além disso, o reconhecimento formal de nações indígenas e o fortalecimento de mecanismos de participação popular na tomada de decisões políticas colocam a investidores desafios associados a gestão de relações com as comunidades locais no entorno dos projetos, sobretudo na área de infraestrutura, energia e mineração.

No entanto, não devem se concretizar as expectativas – tanto de parte da sociedade civil quanto de um apreensivo empresariado – de uma reviravolta socioeconômica e regulatória.

Por um lado, a nova Constituição (por si própria) não se refletirá na melhoria concreta e rápida das condições de vida da população, algo que os manifestantes têm exigido do governo desde o ano passado. Por outro, mudanças que comprometam profundamente o ambiente de negócios no Chile são improváveis uma vez que o necessidade de uma maioria  qualificada de dois terços para a aprovação de qualquer artigo constitucional conterá os extremismos. Além do mais, a legislação prevê que devem ser preservados os compromissos assumidos pelo Chile em tratados internacionais, incluindo aqueles que protegem os investimentos estrangeiros como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

O plebiscito constitucional de 25 de outubro de 2020 foi um momento chave na história política e social chilena, colocando à sociedade, ao governo e ao empresariado o desafio de navegar por incertezas ao longo dos próximos dois anos. É o desafio de um processo constituinte para se alcançar uma nova ordem, que usufrua de renovada legitimidade e concilie o avanço social com o responsabilidade econômica que tanto favoreceu o país nas últimas décadas.

*Leandro Lima é analista de risco político para o Chile da consultoria Control Risks e pesquisador do Centro de Estudos das Negociações Internacionais da Universidade São Paulo (CAENI/USP). É doutorando em Ciência Política pela USP, além de mestre em Ciência Política e bacharel em Relações Internacionais pela mesma instituição.

Fonte: Estadão