Imediatismo Mortal

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Janina Onuki

Embora a pior crise do Mercosul, derivada da combinação de crises domésticas e processos eleitorais complexos, tenha sido superada (pelo menos a mais grave, que coincidiu com a crise da Argentina de 2001), no último ano o interesse pelo bloco propriamente dito foi substituído pela atenção dada a outras negociações internacionais (paradoxalmente, na maior parte delas o bloco é um dos protagonistas). São negociações como as da Alca, da União Européia-Mercosul e os incipientes acordos bilaterais, que também já deram sinais de desaceleração, o que pode vir mais uma vez a comprometer a discussão sobre a prioridade do Mercosul nas agendas de política externa dos países-membros. Seria preciso também saber, a esta altura, quanto os países estão dispostos a investir num projeto de integração que vive mais de crises do que de eficácia. E até que ponto estariam dispostos a cooperar.

A palavra cooperação geralmente remete a uma percepção positiva do que pode resultar do relacionamento de dois ou mais atores. Entretanto, isso nem sempre significa que os envolvidos têm os mesmos interesses ou objetivos. No início dos anos 90, tornou-se lugar comum apontar a cooperação entre Brasil e Argentina – e sobretudo a integração regional sul-americana – como a primeira alternativa ao risco de isolamento a que os países da América Latina ficaram submetidos com o fim da Guerra Fria, e como solução para os impactos negativos derivados do aprofundamento da interdependência.

A ênfase sobre a inevitabilidade da cooperação era incentivada pela retomada parcial de uma agenda normativa, favorável à criação e adesão a regimes internacionais, e pela volta da democracia na maior parte dos países da região. Contudo, esses países pareciam não se dar conta dos custos envolvidos num processo de integração – como a dificuldade de se construirem consensos e criar políticas comuns, eventuais perdas em termos comerciais, aumento das demandas sociais.

A decisão de cooperar (ou não) é feita com base num cálculo racional. Ou seja, os atores calculam custos e benefícios, buscando o melhor resultado líquido positivo para cada lado. Portanto, o grande desafio de um processo de integração é a disposição dos países para assumir os custos que inevitavelmente surgem no curto prazo, e ter paciência para esperar os benefícios, que nem sempre serão traduzidos em resultados imediatos. Mais do que ganhos materiais, o cálculo envolve benefícios ou riscos políticos difíceis de serem mensurados.

É disso que se trata quando se fala em integração no Mercosul. É preciso analisar se a integração é um fim em si mesmo, isto é, um objetivo no qual os países estão dispostos a investir (e ceder) a longo prazo, ou se não passa de um instrumento para satisfazer outros objetivos, como simplesmente aumentar o fluxo de comércio, a visibilidade internacional, ou apenas resolver problemas internos. Além disso, é preciso saber a qual modelo de integração se pretende chegar e qual é o grau de comprometimento dos países. Espera-se que o Mercosul se torne um mercado comum (num modelo mais próximo da União Européia, como previsto no Tratado de Assunção, que criou o bloco do Cone Sul em março de 1991), ou bastaria chegar a um modelo Nafta , de área de livre comércio?

O problema é que o Mercosul optou pelo primeiro modelo numa aposta de curto prazo, sem levar em consideração a assimetria de interesses entre os parceiros. Ao longo de quase catorze anos, a integração passou por várias fases, marcadas por avanços e retrocessos, derivados basicamente dos altos e baixos do relacionamento Brasil-Argentina. Foram fases em que predominaram desconfianças (1991-1994), em que o bloco ganhou credibilidade internacional (1994-1995), assim como houve momentos de simples manutenção diplomática e de aumento dos conflitos comerciais, que levaram a crises mais graves, após a desvalorização da moeda brasileira em 1999.

A crise do Mercosul não é estritamente conjuntural, nem apenas delimitada por aspectos comerciais. As dificuldades e a incerteza atual derivam de divergências estruturais, sobretudo no que diz respeito aos modelos de política externa adotados pelos governos Carlos Menem e Collor de Mello, no início da década de 90.

Embora ambos compartilhassem interesses semelhantes – como a consolidação do regime democrático, a abertura da economia e a busca por espaço no novo cenário internacional – eram diferentes suas percepções do mundo e, conseqüentemente, o comportamento internacional e as estratégias de ação adotadas.

Para o Brasil, o Mercosul aparecia como parte de um projeto mais amplo de liberalização econômica e fator de barganha num mundo de polaridades indefinidas, numa época em que o sistema internacional ainda buscava acomodar as potências que surgiam, após o desaparecimento da União Soviética. O bloco poderia garantir a autonomia e a inserção internacional do Brasil, à medida que também garantisse sua liderança regional e ampliasse sua capacidade de negociação em diversos fóruns multilaterais. O discurso brasileiro de reafirmação de liderança no Mercosul era ouvido tanto em instituições como a OMC, quanto na ONU (onde o País defendia um assento permanente no Conselho de Segurança e reivindicava protagonismo na discussão da reforma da organização, o que incomodava a Argentina, candidata à mesma posição).

A Argentina preferiu romper com a tradicional política externa prevalecente desde a década de 30 (marcada pela defesa da autonomia, com oposição e confronto nas relações com as grandes potências). A percepção que o governo Menem tinha do cenário pós-Guerra Fria era de um mundo com predomínio de uma única potência, os EUA.

Com o argumento de que a Argentina tinha optado por uma política de não-confrontação com grandes potências (principalmente pelos resultados negativos da Guerra das Malvinas), e tinha definido como objetivo principal mudar sua imagem internacional, buscando afirmar-se como um país normal e previsível, Menem adotou o modelo do “realismo periférico” como base da sua política externa. A proposta, agora, consistia em justificar as ações internacionais da Argentina, no sentido de subsidiar uma postura de alinhamento e de manutenção de “relações carnais” com os EUA, (como disse Guido Di Tella, então embaixador em Washington, sobre as relações privilegiadas que os dois países deveriam manter).

O Mercosul era apenas parte dessa estratégia, e também era utilizado como instrumento para consolidar o interesse dos EUA pela Argentina (o que nunca aconteceu). A prevalência dessa prioridade na agenda da política externa argentina sempre fez com que o Brasil olhasse seu parceiro com certa desconfiança.

A divergência entre objetivos e prioridades da política externa dos dois países e a desconfiança mútua resultaram em baixo investimento institucional no Mercosul. Mantiveram-se, assim, as negociações intergovernamentais (nunca houve o compromisso de criar instituições supranacionais) e continuou a prevalecer a lógica de ganhos relativos, ou seja, uma competição por “quem ganha mais”.

Essa estrutura deu também pouca oportunidade para ampliação do espaço de participação de outros atores sociais. Vale lembrar que setores da sociedade civil organizada passaram a cooperar, formando uma espécie de “Mercosul paralelo” relativamente integrado, mas sem participação no processo decisório do bloco – como centrais sindicais, grupos acadêmicos e universitários e os municípios que se organizaram em torno da Rede Mercocidades.

O Mercosul só avança em 1994, quando o Nafta se fecha para outros parceiros (desanimando a Argentina, que ainda tinha esperança de consolidar sua aliança com os EUA) e o Brasil ganha estabilidade com o Plano Real e visibilidade internacional com a eleição de Fernando Henrique Cardoso. São da mesma época as evidências de ganhos de curto prazo, com aumento do intercâmbio comercial e atração de investimentos para a região. O Mercosul tornava-se uma espécie de “cartão de visitas internacional” para o Brasil e a Argentina.

Mas esta imagem positiva seria construída muito mais por uma percepção externa do que pela decisão de aprofundar a integração – tanto que a visibilidade do Mercosul se amplia, e um primeiro acordo com a União Européia é assinado em 1995, assim como com o Chile e a Bolívia, em 1996. A legitimidade vinha de fora, o que a tornava pouco sustentável. Algo como o que se veria em 1998, quando a necessidade de aprofundar o Mercosul foi utilizada como argumento central para o Brasil bloquear a proposta americana de criação da Alca.

A retórica diplomática continua buscando não contaminar outros processos de negociação, sobretudo com a União Européia. É preciso preservar a imagem de que estamos todos bem e brigas são normais entre “hermanos” – nada que não possa ser resolvido com um painel na OMC (por falta de regras institucionais claras, contenciosos entre Brasil e Argentina não foram resolvidos dentro do próprio bloco, como a disputa sobre a exportação de frangos para a Argentina, que foi levada a julgamento na OMC).

Aliás, a agenda externa brasileira parece ser o ponto central que tem garantido sobrevida ao Mercosul. Ou seja, enquanto outros tiverem interesse em negociar com o bloco, ele existe. Mas a perspectiva de se ter um Mercosul voltado para fora, limitado a ser um instrumento de barganha nos distintos fóruns de negociação, e não um projeto em si mesmo, pode pôr em risco as próprias negociações externas.

Se o Mercosul não for recolocado como objetivo estratégico nas agendas de política externa dos países-membros, e não se investir na sua institucionalização, pouco se avançará em direção ao objetivo inicial, de criação de um mercado comum, em que se prevê a integração completa, com eliminação de barreiras tarifárias, livre circulação de produtos e pessoas e criação de políticas comuns, incluindo uma moeda comum. O cenário será de um Mercosul “retórico”, usado pelos países como (e quando) lhes for mais conveniente.

Por isso, a principal dificuldade, hoje, está em fazer com que os países renovem seus compromissos políticos com o Mercosul. Após mais de uma década, a projeção é de cenários pouco otimistas, e a combinação de crises estruturais define o bloco: crise de resultados, de compromissos e de expectativas políticas.

Num cenário em que predominava a incerteza, associar-se a um bloco era uma boa alternativa. E o Mercosul foi criado. Mas, aos poucos, a limitação de resultados levou o Mercosul a decidir pela via rápida: expandir-se, sem discutir o aprofundamento do acordo, a internalização das normas e a garantia do cumprimento das decisões.

Como o Mercosul é um projeto essencialmente governamental – não apenas no que se refere à participação efetiva da população, mas também pela própria definição do processo decisório, que exige o consenso, cada vez mais difícil de se conseguir entre os quatro membros – o bloco fica naturalmente mais vulnerável às crises domésticas. E três deficiências marcam, então, sua trajetória ao longo da década de 90, expressas na falta de efetividade, de eficácia e de transparência.

A inefetividade dos acordos assinados e a falta de eficácia no que diz respeito à sua implementação revelam a incapacidade do bloco – por falta de regras institucionais claras – de responder às demandas e às dificuldades da relação entre os países, e o baixo grau de compromisso com a integração que vigora entre eles. Além disso, atualmente, o processo do Mercosul é uma das poucas iniciativas do gênero em que são escassas as informações disponíveis sobre documentos e decisões. A falta de transparência dificulta ainda mais a construção de relações de confiança, não apenas entre governos, mas com a própria sociedade.

Isso faz com que as perspectivas para o Mercosul sejam as mesmas do início dos anos 90: um meio de se resolverem problemas domésticos, e não uma proposta de integração efetiva, definida como um projeto comum, parte dos interesses de política externa dos países.

Embora o discurso pró-Mercosul tenha sido renovado com a eleição de Lula e de Kirchner, as agendas de política externa ainda se guiam por objetivos divergentes. Se depender da Argentina, envolvida nos problemas da crise que começou em 1999, o projeto de integração será deixado em segundo plano, a não ser que traga benefícios materiais de forma mais imediata.

Cabe ao Brasil a liderança do Mercosul. Isso implica mostrar aos parceiros que eles podem se beneficiar da cooperação, e da liderança brasileira no plano internacional. Para tanto, porém, o País terá de assumir alguns custos (o maior deles tem sido o de levar os parceiros a posições conjuntas nas negociações internacionais) que talvez não estejam previstos em sua agenda.

fonte: Publicado no jornal Valor Econômico. Sexta-feira, 15, 16 e 17 de outubro de 2004. Caderno “Eu & Fim de semana”
15/10/2004