Amâncio Jorge de Oliveira
Conforme antecipado por este boletim, em novembro de 2003, a reunião Ministerial de Miami, quando muito, teve como resultado evitar um desarranjo completo da Alca ao definir o famigerado modelo “à la Carte” de negociações. Daí para frente poderíamos esperar tanto uma dinamização do processo quanto a reedição das divergências Brasil-Estados Unidos e, como conseqüência, uma nova situação de impasse e paralisia.
A reunião do Comitê de Negociações Comerciais em Puebla (México), em curso, dará a resposta. Será a primeira reunião oficial de relevo que dirá se, na linguagem diplomática, “o espírito de Miami” ficará preservado. Por “espírito de Miami” entenda-se um drástico enxugamento da agenda de negociações; a conformação de um conjunto restrito de regras e obrigações equilibradas, compulsório a todos os participantes; e uma série de compromissos profundos cuja adesão fica a critério dos interesses dos países e blocos regionais, portanto, de modo espontâneo.
A empreitada não será nada fácil, graças a pelo menos dois grandes conjuntos de desafios interligados entre si: 1) aqueles relativos às dificuldades em se consolidar um núcleo de obrigações que harmonize regras de comércio e 2) aqueles relacionados à baixa, porém possível, possibilidade de se encaixar o acordo dentro de uma faixa que contemple interesses comuns de Brasil e Estados Unidos.
Quanto ao primeiro conjunto de desafios, a grande questão é saber o escopo exato do tal acordo multilateral de regras e obrigações ou, numa linguagem formal, o que entra no chamado núcleo duro da Alca de obrigações compulsórias (base line agreement). Isso ainda está inteiramente por se definir. O mínimo é que existam regras que harmonizem comércio e mecanismos com capacidade de fazê-las valer, tais como, um mecanismo de solução de controvérsia eficaz. Sem isso, o mais provável é emergir um acordo mais propenso a distorcer comércio do que qualquer outra coisa, tendo em vista disparidades em termos de regras de origem, investimentos etc. Parece escapar a alguns o fato de que a constituição de uma área de livre comércio não pode deixar de vir acompanhado por regras e disciplinas.
Para piorar o quadro, nem mesmo a barganha de acesso a mercados está sendo feita de forma homogênea e sim por meio de petições e ofertas bilaterais. Ou seja, os Estados Unidos conseguiram, com significativa contribuição brasileira, praticamente reinstaurar o fracassado “modelo ALADI” de negociações. E é exatamente este formato que o Brasil está levando para Puebla. Nesse campo, justiça seja feita: o Brasil conseguiu pôr a perder tudo o que havia conquistado em termos de método de negociações baseada em empreendimento comum (“nada estará acordado enquanto tudo não estiver acordado”) e na regra da nação mais favorecida regional (“um benefício dado a um dos membros do acordo será automaticamente estendido aos demais membros do acordo”). Nos vemos então fadados a negociar no estilo de “centros e raios”, ou seja, via acordo bilaterais com o Nafta, como sempre quiseram os norte-americanos.
O segundo desafio não é menor que o primeiro. As divergências de concepção sobre o escopo da Alca entre Brasil e EUA devem perdurar. Um sinal disso foi dado antes mesmo de Puebla quando Brasil foi bem sucedido em abortar uma reunião mini-ministerial em Santiago do Chile, sob a alegação de que a Venezuela e caribenhos não haviam sido convidados.
Os resultados de Puebla dependem da postura do Brasil e dos EUA. Deste, em ano eleitoral, espera-se pouco. O máximo é que suavizem, como fizeram em Miami, suas demandas por regras de comércio que possam expor o Brasil a contenciosos internacionais, tais como compras governamentais e regras de investimentos. Já do Brasil, para que o acordo se viabilize, espera-se que prevaleça uma postura pragmática de focar na substância da barganha e maior disposição para encorpar o núcleo duro do acordo. Exemplo possível disso seria aceitar incorporar serviços nesse núcleo duro.
Os indicativos, portanto, não são muito alentadores. A última tacada dos negociadores oficiais foi instar o Ministério do Desenvolvimento Agrário a entrar no debate. Esta atitude, para especialistas em negociações internacionais, pode ser entendida como uma espécie de tática intencional de “atar as mãos” e justificar que não pode fazer concessões. Ou seja, buscar a base doméstica de apoio para posturas defensivas. Essa habilidade o Itamaraty tem de sobra.
Amâncio Jorge de Oliveira, doutor em Ciência Política pela USP, é diretor de pesquisa do CAENI e coordenador do Projeto ALCA na Prospectiva Consultoria de Assuntos Internacionais.
fonte: Artigo publicado no Boletim Prospectiva.
3/2/2004