O Mercosul Na Geladeira

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Janina Onuki

A reunião de Cúpula do Mercosul, realizada em Puerto Iguazu (Argentina), região da Tríplice Fronteira, entre 7 e 9 de julho de 2004, tinha como objetivo – além da passagem da presidência pró-tempore do bloco da Argentina para o Brasil – discutir alguns pontos centrais para o aprofundamento da integração.

Faziam parte da pauta da reunião, várias questões – desde acordos com outros países até a regulamentação da venda de gás, a liberalização de serviços, e a implementação de políticas educacionais. Com uma pauta tão extensa quanto os problemas que o bloco enfrenta, os objetivos da reunião ficaram tão difusos quanto costuma ser o discurso diplomático. O que ocorreu neste Encontro foi uma corrida presidencial para apagar o fogo iniciado dias antes com a decisão da Argentina de impor barreiras a produtos brasileiros. Mas essa prática não é novidade, tornou-se lugar comum no Mercosul -sobretudo por parte da Argentina- tomar decisões de forma unilateral, denfendendo apenas os seus interesses nacionais.

O objetivo da reunião tornou-se um só: tentar garantir a continuidade do bloco, e não contaminar a imagem externa (sobretudo diante dos europeus), mostrando que estamos todos bem, e brigas podem acontecer entre “hermanos”, mas nada que não possa ser resolvido com um painel na OMC. Mas, talvez, o fogo tenha se alastrado mais do que o esperado e, deixou-se transparecer que os interesses individuais ainda prevalecem sobre o objetivo da integração, e a lógica de ganhos relativos permancem nestes casos.

AGENDA EXTERNA E O INTERESSE MEXICANO

Entre os pontos da reunião, destacavam-se dois: o pedido de ingresso do México como membro associado ao Mercosul, e a agenda externa do bloco (ou seja, os vários acordos que o Mercosul vem avançando nos últimos meses – como União Européia, Comunidade Andina, Índia, África do Sul e outros).

A prevalência de uma agenda externa é o que tem mantido o Mercosul vivo (como apontei no meu artigo anterior, publicado nesta coluna no mês de junho/2004), afinal é preciso estar bem vivo para mostrar as vantagens que existem em negociar com o bloco. E parece que acordos com outros blocos e países tornaram-se o ponto central para os países membros, como se isso pudesse garantir um pouco mais sobrevida ao Mercosul. Ou seja, enquanto outros tiverem interesse em negociar com o bloco, ele existe. E acordos parecem não faltar – desde o tão esperado acordo com a União Européia, até a mais recente discussão de uma agenda com o Egito.

O maior desafio agora é justamente o acordo Mercosul-UE, cujo prazo para apresentação de propostas se encerra no final de julho, quando termina também o mandato negociador do atual Comissariado europeu. Estamos ainda à espera do jogo de melhoria das propostas para tentar fechar um acordo, cujo nível de abrangência vai depender da satisfação do Brasil com relação ao sistema e montante das cotas agrícolas, bem com a satisfação dos europeus nas ofertas brasileiras sobre regras de comércio.

O que provavelmente o Mercosul ainda não se deu conta é do impacto que terá sobre os países membros um acordo deste tipo, já que grande parte das regras ainda não foram incorporadas às agendas domésticas dos países. Certamente os europeus olham com desconfiança ao negociar com um bloco cujos membros impõem salvaguardas uns aos outros sem regras definidas.

Outro acontecimento de destaque no Encontro de Puerto Iguazu foi a presença do Presidente mexicano Vicente Fox e o pedido para ingressar como membro associado do Mercosul. Isso foi anunciado à imprensa como um grande avanço da integração, e causou uma sensação de fortalecimento do bloco.

É antiga a discussão sobre o que deveria vir primeiro -e seria mais benéfico- no processo de integração: aprofundar ou expandir o Mercosul. E parece que decidimos pela via rápida e mais fácil: expandir sem discutir o aprofundamento do acordo, a internalização das normas e a garantia do cumprimento das decisões.

Mas o que significa a associação do México ao Mercosul? O México, após definir uma estratégia de liberalização e diversificação de parceiros comerciais no final dos anos 90 – mesmo não tendo como deixar de priorizar o Nafta – tem claras pretensões políticas no Continente.

Além de não ter interesse em apoiar a criação da Alca (até para não ampliar os benefícios conquistados com o Nafta para outros países), o México já declarou que tem todo interesse em ocupar o mesmo assento permanente no Conselho de Segurança que o Brasil aspira.

Nessas condições, resta saber o que o Brasil ganha em associar o Mercosul ao México, do ponto de vista político, e o que isso significa em relação à liderança do país na América do Sul, anunciada como a prioridade do governo brasileiro.


BRASIL, ARGENTINA, E AS GELADEIRAS…

Entretanto, o tema que prevaleceu durante todo o encontro, foram as barreiras que a Argentina quer impor aos eletrodomésticos brasileiros. Isso revela que nossos vizinhos continuam projetando no Mercosul a mesma visão que tinham no início dos anos 90 (com o governo Menem), vêem o Mercosul como uma alternativa para resolver vários dos seus problemas econômicos domésticos. A Argentina continua usando o argumento da baixa competitividade industrial do país, para justificar a criação de barreiras aos produtos brasileiros.

Esquece-se que a Argentina passou por processo de “desindustrialização” na década de 80, e com a abertura econômica nos anos 90, não houve investimento na modernização do parque industrial. Aliás, na época a maior parte dos empresários argentinos nutria a percepção de que o Mercosul seria uma oportunidade para que o seu parque industrial pudesse ser modernizado e tornar-se competitivo no mercado mundial. O que eles percebem agora é que, com o atraso porque passavam suas empresas, não era possível alcançar o Brasil sem o apoio do governo.

Mas este episódio só vem reafirmar a fragilidade institucional do Mercosul que não conseguiu criar uma forma eficaz de resolução de controvérsias, tanto no âmbito comercial, quanto nas discussões políticas em que cada vez mais se exige dos países comportamentos coordenados.

Questionados sobre a falta de mecanismos institucionais para resolver problemas que podem até ser comuns num processo de integração (mas não tão recorrentes, depois de treze anos de vigência do acordo), a resposta dos países membros foi a proposta de criação do Tribunal Permanente de Revisão do Bloco, para julgar pendências comerciais dos países membros.

Mas isso não é nenhuma novidade, e vem sendo discutido desde o Protocolo de Olivos. O que há de novo numa estrutura que continua privilegiando a negociação inter-governamental, à medida que cada país indica seu “representante”? E Kirchner parece ter indicado um juiz suspeito de corrupção no seu país. Parece descaso, ou os mais indispostos com o discurso do vizinho poderiam interpretar isso como uma afronta ao Mercosul, pois ao indicar alguém que não se quer dentro do país, significa jogar o lixo para debaixo do tapete.

O fato é que nesta Reunião de Cúpula ficou evidente que este é um momento crucial para o Mercosul. Ou se enfrentam os problemas internos de frente, e os países se comprometem a aprofundar a integração de fato, atendendo inclusive às demandas de vários atores sociais. Ou a integração tende a ficar na geladeira, e com o risco de se congelar definitivamente.

Janina Onuki é professora de Relações Internacionais da PUC-SP e pesquisadora do Centro de Estudos das Negociações Internacionais (CAENI).

fonte: Artigo publicado no site da Relnet, site de referência de Relações Internacionais: www.relnet.com.br
19/7/2004