Copos, Trilhos e Moedas: a Lógica da Política Comercial Brasileira

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Amâncio Jorge de Oliveira
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A figura de linguagem sobre copos meio cheios ou meio vazios foi acionada para traduzir os resultados dos últimos lances da Rodada de Doha da OMC, em que foi assinado o framework das negociações multilaterais. Competiram versões otimistas de que o copo, como os avanços na área agrícola — particularmente no campo de eliminação de subsídios às exportações —, teria ficado 80% cheio, como visões de que teria ficado 80% vazio e os avanços foram tímidos e incertos.

Percentuais à parte é difícil não nutrir uma dose de otimismo, especialmente tendo-se em vista o fato de que o cenário de um colapso no sistema multilateral de comércio não estava descartado, com conseqüências sérias para o Brasil. Ainda que este otimismo deva ser moderado pois ainda não sabemos se o curso das negociações farão o copo encher, e transbordar para os agronegócios brasileiros, ou se uma pancada protecionista qualquer, do lado europeu ou americano vai jogar o copo longe, com água e tudo.

Mas, mais útil ainda para compreender os resultados de Doha, é resgatar a idéia de trilhos e moedas, figuras que melhor explicam a estratégia coordenada da política comercial brasileira em seus distintos fóruns.

Como é amplamente sabido, como parte do desenho de sua estratégia, a diplomacia brasileira defendeu que todos os três principais fóruns de negociações (OMC, Alca e Mercosul-União Européia) fossem feitos com base no princípio do pacote único (single-undertaking). Na medida em que não se tinha clareza sobre quais fóruns andariam, era preciso instaurar mecanismos que garantissem direitos e obrigações equilibrados intra-fórum, leia-se concessões inter-temáticas que valessem a pena para o Brasil. Fatiar o processo isoladamente em qualquer uma das negociações resultaria em ceder muito por nada (ou quase nada).

Quando, ainda na fase inicial das ofertas de acesso a mercado na Alca (em fevereiro de 2003), os Estados Unidos deram o passo em falso de propror um esquema de bilateralização do processo de negociações da Alca, além de se colocarem irredutíveis quanto a discutir subsídios agrícolas no âmbito regional, o Brasil teve de mudar de estratégia. Neste momento surgiu a estratégia dos 3 trilhos, com a compartimentalização da agenda nos trilhos multilateral (regras de comércio), regional (tema de menor peso) e bilateral (acesso a mercados).

Uma segmentação semelhante aconteceu nas negociações Mercosul-União Européia, com a diferença de que a figura era moedas de troca e bolso único. A União Européia tratou o tema das quotas com um montante absoluto em um bolso único. Ofereceu para o Mercosul um determinado percentual de cotas para uma primeira etapa do processo de liberalização, e o restante e ser distribuído no âmbito multiltaral, sem definição da parcela do Mercosul para esta segunda fase. A resposta brasileira foi à altura: segmentar as concessões nas áreas de interesses europeus entre o âmbito regional e Doha.

Vê-se, portanto, que se Doha emperrasse, a estratégia brasileira nas negociações regionais iria à breca. Com os avanços na OMC, a fragmentação desenhada pelo Brasil recupera seu sentido. Qual seja, a de que temas complexos relacionados a regras de comércio (subsídios, anti-dumping, direito da propriedade intelectual, investimentos etc) sejam tratados na OMC, enquanto que acesso a mercado, como as questões de cotas avancem nos regionais.

É ainda possível que Mercosul-União Européia fique muito esvaziada, e perca seu appeal. Os próximos lances dessa reunião estão na iminência de acontecer. Fato é que o documento assinado de Doha dá nitidez possível à estratégia comercial brasileira. Somado ao sucesso na área de defesa comercial, o momento deve mesmo ser de otimismo. Se os trilhos vão ficar no lugar e as moedas virão para o bolso brasileiro, só o tempo dirá.
Amâncio Jorge de Oliveira, doutor em Ciência Política pela USP, é diretor de pesquisa do CAENI e coordenador do Projeto ALCA na Prospectiva Consultoria de Assuntos Internacionais.

fonte: Artigo publicado no site da Relnet, site de referência de Relações Internacionais: www.relnet.com.br
10/8/2004